Uma família é atormentada por espíritos em uma antiga casa mal-assombrada. A sinopse já nos faz pensar “já vi isso em algum lugar”. Porém, o que A Maldição da Residência Hill fez foi explorar ainda mais os efeitos e consequências que experiências traumáticas podem acarretar na vida futura dos personagens. A série é o ponto final em algo que já vem sido atestado ao longo dos últimos anos: o gênero do terror psicológico está de volta. E nesse post eu falarei um pouco sobre isso.
Quando estreou na Netflix no dia 12 de outubro (uma bela série para crianças não dormirem mais), A Maldição da Residência Hill parecia mais uma tentativa de recriar algo que já havia feito sucesso no passado. A série é baseado no clássico do terror Desafio do Além de 1963 que, por sua vez, é baseado no livro de Shirley Jackson. Mas, talvez, a única semelhança que se pode encontrar entre a versão de 2018 e a “original” são alguns nomes de personagens. O seriado conta uma história que aparenta ser clichê de uma forma nunca antes vista. Alternando entre flashbacks e o presente, nos é mostrado o que jamais era visto em filmes do gênero: o que acontece depois que a família abandona a casa? Pois em praticamente todos os filmes o enredo é sistemático: família se muda para uma casa grande e velha; estranhos acontecimentos atingem principalmente as crianças; adultos inicialmente céticos começam a lutar contra os espíritos; família abandona a casa.
O diretor, roteirista e criador da série Mike Flanagan conseguiu de forma inteligente nos mostrar as óbvias consequências psicológicas que experiências traumáticas podem marcar em crianças. A alternância entre presente e passado é usada, aqui, com maestria. Poucas são as vezes que é preciso indicar qual a linha do tempo que estamos vendo. Ao longo dos episódios podemos perceber que nem as crianças mais velhas saem moralmente ilesas da casa. E aqui preciso destacar o trabalho de Michiel Huisman, que já atuou em um dos filmes dessa nova era, O Convite. O ator holandês interpreta o irmão mais velho Steven Crain, um menino que tentava carregar a família nos ombros quando criança, mas resolveu bloquear qualquer lembrança que tivesse da casa.
OS IRMÃOS
Outro mérito impossível de passar em branco do diretor foi a construção dos personagens principais da série: os irmãos. Uma das técnicas mais antigas para que um filme de terror dê certo é a criação de empatia para com seus protagonistas. Mike Flanagan dedicou os 5 primeiros episódios para cada criança da família Crane. E não precisou mais do que isso para conhecermos todos, suas características mais marcantes e, principalmente, suas personalidades, essas mesmas que definiriam seus futuros. A edição também pode ser destacada aqui quando temos a transição de tempo baseada em acontecimentos relacionados a uma criança específica. Em nenhuma vez somos jogados ao futuro e/ou passado sem uma lógica embutida.
Os sustos existem, mas não são gratuitos. Tanto é que o diretor inseriu fantasmas escondidos que muitos nem perceberam. E a sua real intenção foi confundida como um simples artifício para entreter o público. Flanagan criou uma obra bela visualmente, com uma fotografia que auxilia na história e com um roteiro muito bem amarrado que não deixa nenhuma ponta solta, o que seria bem comum em uma série do gênero. Não podemos negar, é claro, que a série utiliza de um trope muito frequente: nem tudo é o que parece. Embora desde o primeiro episódio a presença de forças sobrenaturais é inquestionável, em alguns momentos o roteiro nos faz ter dúvidas sobre a sanidade da mãe.
E é para a mãe que dou meu segundo destaque. Carla Gugino sempre foi aquela atriz que o rosto é familiar, mas que nunca nos remonta a uma boa atriz. Aqui na série ela resolve se mostrar para o mundo. Em certas horas vemos uma mãe extremamente amorosa e que consegue mostrar esse amor de forma diferente para cada um dos 5 filhos. Como citei acima, em alguns momentos a saúde mental da mulher é posta em cheque, e a atriz consegue transpor essa dúvida de forma muito verossímil. A relação dela com o marido (o ressuscitado Henry Thomas de E.T.) pode ser considerada uma verdadeira história de amor. É quase que palpável o amor entre os dois, que perdura por toda série de uma forma estranha, porém bela.
Para não adentrar mais ainda na série e, sem querer, entregar alguns spoilers, deixo o trailer e a sugestão: terminem de ler esse post e vão ver A Maldição da Residência Hill!
calma que o post ainda não acabou!
A NOVA ERA
A Maldição da Residência Hill é, para mim, uma confirmação da nova era do terror que Hollywood está vivendo.
O gênero de terror é muito abrangente. Vou me ater, entretanto, a apenas um: o terror psicológico, meu favorito. Os filmes desse gênero tendem a ter um roteiro e história mais inteligentes, pois precisam assustar sem a predominância das jumpscares. O susto tem que ser subjetivo, implícito num ato, numa fala ou num simples gesto. As cenas de susto existem nesse tipo de filme, mas não é uma a cada 5 minutos e, quando utilizadas, são de maneira coesa e que dão sequência no que o filme está contando. As histórias estão cada vez mais ricas e, principalmente, moldadas aos tempos atuais. Dessas características eu gosto de destacar dois filmes: A Corrente do Mal e Corra!.
Corra! foi muito bem divulgado na mídia, inclusive, recebendo indicação para melhor filme no Oscar. A história é envolvente e a já citada empatia é construída desde os minutos iniciais. Com um assunto que, infelizmente, é corriqueiro e atual, o estreante Jordan Peele soube montar uma película que assusta, faz rir e faz pensar. Eu ia colocar a sinopse aqui mas ela entrega já um spoiler. Se você ainda não viu o filme sugiro que não leia sinopse, nem crítica e nem veja trailer. O trailer eu linko abaixo para quem quiser:
Já A Corrente do Mal (que em inglês tem um título muito mais sucinto e adequado: It Follows) foi mais popular no mainstream independente e é o primeiro filme dessa nova era. Me lembro que fui olhar com pensamento que seria mais do mesmo de um gênero que eu gosto tanto mas que estava completamente defasado. Eis que surge aquele tenso plano sequência inicial e eu já me ajeitei melhor na cadeira. As “entidades que te seguem” (não pensei em nome melhor para definir) são uma das criações mais aterrorizantes do terror moderno. O trailer:
Listarei alguns dos melhores exemplos dessa nova era que acredito que sejam essenciais:
O Convite
Uma tragédia abala o casal formado por Will e Eden. Eles perdem o filho pequeno e, desolada, Eden vai embora sem dar notícias. Dois anos mais tarde, ela volta a procurar o marido, acompanhada de outro homem, e totalmente diferente de como era antes.
Fragmentado
Kevin possui 23 personalidades. Ele sequestra três adolescentes que encontra em um estacionamento. Vivendo em cativeiro, elas passam a conhecer as diferentes facetas de Kevin e precisam encontrar algum meio de escapar.
Ao Cair da Noite
Depois que um apocalipse misterioso deixa o mundo com poucos sobreviventes, duas famílias são forçadas a compartilhar uma casa e fazer uma incômoda aliança.
A Bruxa
Em uma fazenda no século 17, uma histeria religiosa toma conta de uma família que acusa a filha mais velha pelo desaparecimento do seu irmão ainda bebê.
Hereditário
Após a morte da reclusa avó, a família Graham começa a desvendar algumas coisas. Mesmo após a partida da matriarca, ela permanece como se fosse uma sombra sobre a família, especialmente sobre a solitária neta adolescente, Charlie, por quem ela sempre manteve uma fascinação não usual. Com um crescente terror tomando conta da casa, a família explora lugares mais escuros para escapar do infeliz destino que herdaram.
O Babadook
Amelia, viúva e ainda atormentada pela violenta morte do marido, tenta lidar com o medo de monstros que aterroriza seu único filho, o pequeno rebelde Samuel, e enfrenta dificuldades em amar o garoto. Após encontrar um misterioso livro, o menino, certo de que há um monstro que deseja matá-lo, começa a agir irracionalmente para o desespero de sua mãe. Mas logo Amelia percebe que realmente há uma sinistra presença na casa e ao redor deles.
Acho importante destacar, também, um acontecimento que acho irônico. Os slashfilms nunca me seduziram. Um assassino que nunca morre correndo atrás de pessoas aleatórias? Não, obrigado. E onde está a ironia? Ao mesmo tempo em que escrevo esse texto sobre a revigoração do terror psicológico, o clássico Halloween está quebrando recordes de bilheteria ao redor do mundo, o que já apressou diversos estúdios a realizarem novos filmes slashs. Nada novo, é claro. A Hollywood dos tempos de hoje está muito lerda criativamente. Seguem à risca a máxima: nada se cria, tudo se copia. Com exceção de A Maldição da Residência Hill, todas as obras citadas aqui são roteiros originais. Mas isso é assunto para outro post…
Monstros existem e fantasmas também. Vivem dentro de nós e, às vezes, eles vencem.“
Stephen King.